Um dia desta semana, fui passear pela baixa lisboeta numa tentativa de desanuviar a cabeça dos problemas do dia-a-dia. Podia ter ido ao teatro, ao cinema, a um shopping mas não, fui passear para as ruas da baixa e observar as pessoas.
No meio da azáfama diária e da correria habitual do meio da tarde, do meio da semana e do meio da vida, encontrei todo o tipo de gente, com todo o tipo de maneira de vestir e com o todo o tipo de caminhar. Encontrei os despreocupados, como eu, que por ali passeavam, os apressados que caminhavam freneticamente e os outros que caminhavam e que balbuciavam alguma coisa e depois paravam, voltavam a dizer algum disparate e continuam a caminhar. Estes últimos a que me refiro, são os chamados “loucos”, que toda a gente olha e se afasta, podem rir de algo que dizem mas afastam-se com medo de não sabem bem de quê, são os excluídos socialmente que ninguém compreende. Destaco duas figuras que ficaram marcadas na minha memória neste meu passeio analítico: um homem de meia-idade, de higiene duvidosa que gritava para quem quisesse ouvir “o Sócrates é um panaleiro”, “lambe a co.. a todos” e uma senhora por volta dos seus setenta anos, quase nua da cintura para baixo, descalça e com aspecto sujo, gritava em calão frases não compreensíveis. Olhei em volta e verifiquei que as outras pessoas riam e afastavam-se, e algumas nem olhavam com medo. Compreensível mas aceitável? Ponho algumas questões.
Foram estes “loucos” que me levaram a pensar sobre o doente mental na sociedade, sobre o estigma do doente mental.
As doenças mentais, talvez porque continuam a convocar os nossos medos mais profundos, continuam a ser algo tabu, proibidas no nosso discurso e disfarçadas com termos mais suaves como esgotamentos e problemas de cabeça. São doenças que estigmatizam as suas vítimas de forma subtil, segregando o doente e até os seus familiares.
O confrontar um doente mental dá à maioria das pessoas um desconforto, porque tudo o que é diferente amedronta, porque se confrontam com uma realidade que lhes poderá acontecer e ainda que, inconscientemente, têm medo de ser um “espelho”.
Mas o isolamento destes doentes resulta também do facto dos outros ditos “normais” não terem tempo para os ouvir ou nem sequer prestarem atenção naquilo que eles dizem.
São muitos deles pessoas sozinhas, para não dizer abandonadas, e cheias de vontade de abraçar, beijar e rir.
Importa que seja dado o primeiro passo no sentido de se desmistificarem as doenças e o doente psiquiátrico. Terão que ser as instituições, com uma política de proximidade com a comunidade e as famílias transmitindo as suas experiências, demonstrando que a doença psiquiátrica é uma eventualidade como qualquer outro tipo de doença, não é contagiosa e pode ser curada ou controlada, permitindo que o doente faça uma vida normal e socialmente útil.
Mas afinal o que é isto de estigma? Melhor o que é o estigma social?
Fazendo uma pesquisa simples num motor de busca virtual, encontramos alguns conceitos e quase todos referem a doença mental como motivo de estigma.
Refere ainda que “
O estigma pode se apresentar em três formas: Deformações aparentes ou externas. Exemplos deste tipo são manifestações físicas de anorexia nervosa, hanseníase ou defeito físico. Segundo, desvios conhecidos em características pessoais. Por exemplo, viciados, alcoólatras, deficientes mentais e criminosos são estigmatizadas desta forma. Terceiro, "estigmas tribais" são característicos de um grupo étnico, nação ou religião que se constituem em desvios ao padrão dominante. Por exemplo, o povo judeu na Alemanha Nazista.
Já a Infopédia refere-nos que o conceito actual de estigma social é mais amplo; considera-se estigmatizante qualquer característica, não necessariamente física ou visível, que não se coaduna com o quadro de expectativas sociais acerca de determinado indivíduo. Todas as sociedades definem categorias acerca dos atributos considerados naturais, normais e comuns do ser humano – o que Erving Goffman (1922-82) designa por identidade social virtual. O indivíduo estigmatizado é aquele cuja identidade social real inclui um qualquer atributo que frustra as expectativas de normalidade.
Goffman distingue três tipos de estigma: as deformações físicas (deficiências motoras, auditivas, visuais, desfigurações do rosto, etc.), os desvios de carácter (distúrbios mentais, vícios, toxicodependências, doenças associadas ao comportamento sexual, reclusão prisional, etc.) e estigmas tribais (relacionados com a pertença a uma raça, nação ou religião).
O termo estigma provem dos gregos ao referirem-se aos sinais corporais (como cortes ou queimaduras) que permitiam advertir que a pessoa era corrupta (como um escravo ou criminoso) e que devia evitar-se, especialmente em locais públicos. Posteriormente com o Cristianismo adicionaram-se mais dois sinais, as erupções cutâneas e os sinais corporais de perturbação física. (Mateu:2007).
Goffman citado por Nunes de Miranda e Furegato (2006:559) afirma que o estigma é caracterizado pela sociedade, por atributos considerados incomuns e a-naturais, observados e evidenciados nas últimas interacções psicossociais. As características podem ser distintas e evidentes e/ou não percebíveis. Assim, permitem a construção da identidade social. Noutras palavras, entendemos o estigma como um desvio do comportamento social.
Já Fazenda (2008: 29) refere-nos que
o estigma tem origem nos estereótipos (padrões sociais) e preconceitos (atitudes individuais) que existem na sociedade e que se transformam em discriminação. A acrescentar a este estigma objectivo, temos que considerar o estigma subjectivo, que é uma interiorizarão dos preconceitos, levando o doente a acreditar que é, de facto, incapaz para a vida social. Poderíamos apresentar outros conceitos de estigma social mas em todos eles se fala na divergência entre os comportamentos do estigmatizado e as regras sociais, e como exemplo quase todos falam do doente mental.
O estigma para o doente mental pode ser mais incapacitante como a própria doença, é como um atestado de incompetência social passado pelos outros que o rodeiam, é ceifar grande parte das hipóteses de sucesso para o indivíduo. Nunes de Miranda e Furegato (2006:558) assumem que O estigma assume dupla perspectiva no contexto psicossocial: desacreditado/desacreditável. Esse movimento se dá quando o indivíduo reconhece e assume a sua característica distinta e evidente perante o espaço publico, considerando-se desacreditado.
O estigma enquadra-se na falta de respeito, em rótulos, mitos e falsas crenças, constituindo-se uma barreira e desencoraja as pessoas e as suas famílias a procurarem ajuda. E há doenças mentais, que, quanto mais cedo começarem a ser tratadas, melhor poderá ser a sua evolução. (Moniz. 2004)
Esta característica castradora do estigma, leva á rejeição com base na diferença, leva à exclusão social com o incutir de vergonha e revolta no indivíduo estigmatizado. O indivíduo, pela rejeição, passa a acreditar que de facto possui um defeito que o impede de corresponder ao que se espera dele, que o impede de se enquadrar nos padrões sociais, diminuindo desta forma a auto-estima, a vontade de procurar ajuda e a desenvolver um processo de encobrimento.
Goffman citado por Fazenda (2008:30) refere que existe um ciclo natural de encobrimento, que começa pelo encobrimento inconsciente, depois passa ao encobrimento involuntário, que pode ser momentâneo ou em ocasiões rotineiras da vida quotidiana e, no extremo, será um encobrimento completo ou desaparecimento.
Como consequência desta atitude discriminatória, a pessoa estigmatizada, carente de retroalimentação que supõe o intercâmbio quotidiano e saudável com os outros, irá sentir-se insegura (ou desconfiada, ou hostil ansiosa, depressiva, etc.) sabendo que existe algo na sua vida que os outros não aceitam e não podem mudar. (Nunes de Miranda e Furegato. 2007)
Hayward e Bright (2201) citados por Nunes de Miranda e Furegato (2007) baseiam o estigma social em três pressupostos:
- Percepção da perigosidade do doente mental, acompanhada de uma sensação de ameaça pessoal quando se esta com ela.
- Atribuição de responsabilidade ao doente pela origem da sua doença, como se a merecesse.
- Sensação que a doença se mantém estática, pelo que não são esperadas mudanças positivas e, como consequência, o evitamento e a exclusão resultam inevitáveis.
Ao perceber que a dimensão do estigma é tão abrangente e nefasto para o indivíduo, família e sociedade em geral, pergunto-me o que podemos fazer para diminuir o estigma social para com o doente mental? Pergunto-me ainda a que níveis podemos actuar para diminuir este impacto estigmatizante?
De acordo com Moniz (2004), o combate ao estigma passa por três níveis: a imagem dos serviços de Saúde Mental e dos psiquiatras, a educação do doente e suas famílias e a informação correcta da comunidade.
No primeiro ponto a autora refere-nos que a mudança de visão da saúde mental, com a introdução da especialidade nos Hospitais Centrais não foi suficiente para mudar as muralhas da visão asilar e paternalista dos Serviços de Psiquiatria. Mas pensa que combater o estigma em doença mental começa nos psiquiatras, pois se pretendemos enquadrar cada vez mais as perturbações, da mente no cérebro, e cada vez mais surgem evidências cientificas nesse sentido, então também quem trata é, antes de mais, um médico que vê a pessoa como um todo, diferenciado em doenças mentais, como outro se especializa em doenças de coração ou do rim.
Em conclusão, queremos psiquiatras de orientação biológica e bons conhecimentos em psicofarmacologia, porque foram eles que de facto, ajudaram a mudar a ideia de que a psiquiatria “era só conversa” e pouco rigor científico. (N. Sartorius (2002) citado por Moniz (2004:5).
Fala-nos ainda que, o estigma da doença mental é um obstáculo forte para qualquer intervenção nesta área, atribuindo-se à Saúde Mental o orçamento mais baixo. Mas antigamente pela quase inexistência de tratamentos disponíveis o problema não era tão notório, mas com o boom dos psicofármacos este não investimento na saúde mental faz toda a diferença.
Quanto á educação dos doentes e suas famílias, autora fala-nos da importância das psicoterapias, de associações de doentes e da psico-educação dos doentes e famílias no combate ao estima, realçando a troca de experiências, a aquisição de informação e o desenvolver de aptidões par melhor lidar com o stress.
A nível da atitude do público em geral, é fundamental a transmissão de informação adequada para o publico (através dos média) que retire as conotações sociais negativas da doença mental e que combata os falsos mitos. Na modificação das crenças das pessoas e na aceitação da patologia em geral, ajuda o conhecimento de pessoas famosas que, em vida, ou postumamente foram consideradas doentes. (Moniz.2004:6).
Já Bauer (2002) citado por Jara (2008:5) fala-nos de A necessidade de uma melhor instrução e educação, designada psicoeducação quando aplicada às doenças psiquiátricas, tornou-se evidente já que adesão ao tratamento e o estigma são reconhecidos como problemas da maior relevância. O mesmo autor menciona M. Thase (2002) ao constatar que os factores comuns a todas as terapias são: a educação sobre a doença, com a colaboração do doente e família na planificação do tratamento da doença; reparação, estabilização e, se possível reforço das redes de apoio social; intervenções para saber lidar com os sintomas; reconhecer sinais precursores e resolver problemas concretos.
Concordante com estes autores e em forma de resumo Mateu (2007) diz que a normalização deveria acontecer mediante a criação de “espaços de escuta social” que permitam desenvolver habilidades e qualidades dos afectados, respeitando as suas características, já que entre as razões do estigma, está presente a atitude monológica e surdez a qualquer forma de escuta do interlocutor. Os discurso profissionais e dos peritos não podem ser os únicos no cenário terapêutico e social, pois o risco da sua presença única é também, o assumir de um modelo unidireccional que coloca os estigmatizados, as famílias e os grupos sociais numa posição de passividade.
A mesma autora salienta a o papel dos enfermeiros, mais concretamente dos especialistas em saúde mental, no combate ao estigma actuando como agentes activos nas mudanças sociais através de intervenções psicossociais e estratégias de educação para qualquer dos âmbitos da assistência.
Em jeito de conclusão, penso que cabe a todos mudar este estigma, lutar para que o respeito, a igualdade e a não descriminação do doente mental na sociedade seja mais que uma utopia e passe a ser um objectivo social.
Bibliografia
Fazenda, Isabel. O puzzle desmanchado: saúde mental, contexto social, reabilitação e cidadania. Lisboa: Climepsi Editores. 2008. p.29-33.
Jara, José Manuel. Doença Bipolar, Estigma e Psicoeducação. Bipolar. nº 33. ano XI. 1º semestre. Lisboa: ADEB. 2008. p. 3-7.
Jorge-Monteiro, Fátima. Ewpowerment e prevenção do estigma social da doença mental. Bipolar. nº 33. ano XI. 1º semestre. Lisboa: ADEB. 2008. p.20- 22.
Mateu, Maria Pilar; Cuadra, Assumpta. El estigma en la salud mental – un reto para el siglo XXI. Revista ROL. Barcelona. 2007. Novembro. p.16-28.
Miranda, Francisco; Furegato, Antonia. Estigma e Preconceito no Quotidiano do enfermeiro Psiquiátrico: A negação da sexualidade do doente Mental. Revista Enfermagem UCRI. Rio de Janeiro. nº 4. Vol. 14. 2006. Outubro/Dezembro. p. 558-565.
Moniz, Margarida.
O Estigma em Saúde Mental. Bipolar – Revista de apoio aos doentes e bipolares. Lisboa. nº 25. 2004. Abril/Dezembro.
Rosen, Dean L.. Estigma, Doença e Saúde Mental. Bipolar – Revista de apoio aos doentes e bipolares. Lisboa. nº 16. 2000. 2º trimestre.