sábado, 22 de setembro de 2012

Bolinhos

Bolinhos…

Bem, hoje não vou falar de nenhum acontecimento da minha vida, mas sim vou falar da importância dos bolinhos. Sim a importância dos bolinhos que alguns dos utentes no final de internamento nos levam como forma de agradecimento pelo nosso trabalho. Mas quem fala em bolinhos, fala em chocolates em doces regionais ou outras iguarias que adoçam a boca dos profissionais de saúde que trabalham directamente com o utente.
Para mim é muito importante. Como guloso assumido e chocodependente, quero explicar o que significa esse gesto.
Nós, enfermeiros, lidamos com tudo que os outros não querem: morte, doença, dor, sofrimento e outros finais menos felizes e temos que o fazer com um sorriso nos lábios, esquecermo-nos que isso existe e desempenhar a nossa função o melhor que sabemos e na maior parte das vezes à sombra de ordenados baixos, dores nas costas e à mercê de gracejos dos médicos, directores e dos próprios doentes. Mas quando um utente nos leva com um sorriso de orelha a orelha, uma caixa de chocolates ou uma caixinha de bolinhos ou uma tarte caseira parece que naquelas fracções de segundo, isso tudo passa e pensamos: olha lembraram-se de nós, estão agradecidos pelo que fizemos… afinal estamos cá.!!!!
Os bolinhos são mais que o que realmente são, são o gesto com os utentes nos dizem obrigado sem corar, são a forma de nos sentirmos acarinhados e são uma forma de nos adoçar o dia.
Entre passagens de turno, dar a medicação, auxiliar nos autocuidados de higiene, realizar pensos, novamente dar medicação, fazer registos, posicionar a pessoa, levantar a pessoa, deitar a pessoa, dar novamente medicação, dar apoio emocional à pessoa, à família, aos amigos, transmitir más noticias, dar o nosso ombro para chorar de tristeza, para chorar de alegria, dar de comer aos utentes que não conseguem comer sozinhos, dar novamente medicação, correr para situações de urgência, apoiar as actividades médicas…. Uff… enfim, temos um minuto de pausa e vamos beber um café e comer alguma coisa. Chegamos à sala de pausa e é tão bom quando há mais alguma coisa que a bolacha Maria ou carcaça que pernoitam no cesto, parece que a toda vontade de continuar está ali concentrada naquele bolinho oferecido, naquele chocolate doado como agradecimento… Comem-se com toda a alegria e quando não sabemos quem ofereceu apressamo-nos a perguntar para associar o doce gesto à pessoa que cuidamos.
Não estou a pedir nada, vejam se me entendem, apenas estou a dizer que também somos humanos e quando estamos 24 sobre 24 horas com os utentes também gostamos que nos digam obrigado… e haverá alguma forma mais doce de o dizer????

domingo, 24 de junho de 2012

Uma estrela que brilha para a eternidade

Ultimamente tenho pensado muito no que hei-de escrever para actualizar o Blog e muitos acontecimentos passados na minha vida de enfermeiro me vêm à cabeça para poder partilhar, mas especialmente um relembro com tristeza, carinho e nostalgia.
Há cerca de 5 anos, talvez, conheci um grande sr. da musica portuguesa: João Aguardela. Para quem não conhece o nome, foi o vocalista da banda Sitiados, aquela banda que cantava esta vida de marinheiro está a dar cabo de mim… paparrapara…
Acompanhei todo o processo de doença do qual foi vitima, desde o diagnóstico até ao trágico desfecho. O João foi morreu de cancro intestinal, doença que a pouco e pouco que foi ceifando pedaços do intestino sucessivamente ate ficar apenas um pequeno pedaço. A alimentação fazia-se por uma sonda inserida nesse pedaço, mas pouco era absorvido, e tinha que ter um soro.
Não posso contar mais sobre situação dele pois faz parte do segredo profissional a que devo obedecer, no entanto quero partilhar uma conversa que tive com ele antes de ele falecer.  Aconteceu num ambiente informal, perto da máquina do café. Já tinha saído de turno e estava de visita aos meus colegas do meu antigo serviço.
Já era final do dia, o ambiente estava escurecido com nuvens cerradas lá fora mas temperadas por laivos alaranjados de um pôr-do-sol que se antevia. A luz que entrava pela janela batia no rosto do João e os pingos do soro a cair brilhavam a cada movimento. Sentado no sofá das visitas, como quem espera por algo, João estava em silêncio a olhar para um fim anunciado. Visivelmente emagrecido, e quem conhecia o João sabia que era um homem magro, com a pele acinzentada e os grandes olhos azuis encovados no rosto apercebeu-se da minha inoportuna chegada que rompeu toda a melancolia e romantismo do ambiente.
Fiquei atrapalhado mas o sorriso do João denunciou logo a alegria de me ver. Convidou-me a sentar junto a ele e a conversa iniciou-se com o trivial: Como está? Como se sente? O que tem feito? etc. até que chegámos ao tema da música: a grande paixão dele. Disse-lhe que nessa manhã tinha pensado nele porque tinha ouvido a famosa canção Esta vida de marinheiro e que era uma canção que fica para a eternidade, assim como os Filhos da nação dos Quinta do Bil ou a Alegre casinha dos Xutos. Ele sorriu e disse-me que ainda bem que pensava assim, pois assim podia partir e sabia que tinha deixado a marca dele no mundo e que antes de se despedir estava a pensar em deixar outras canções escritas para que fossem a sua voz cantada por outros.
Sem dúvida, que o João tinha uma estrela no ombro que brilhava mais que as outras, tinha um carisma especial de grande artista e tinha uma voz que o tornava único.
Diz-se que o João morreu no Hospital da Luz, que foi lá morrer para não o fazer junto a quem viveu a sua doença e para não ser recordado como um corpo inerte, mas sim como alguém que lutou até ao final para partir com dignidade. Eu soube pela rádio e não consegui segurar uma lágrima que me escorreu pelo rosto.
João, se de alguma forma me estás a ouvir, quero repetir-te o que te disse naquele dia: podem não lembrar-se da tua cara, não saber quem tu eras ou o que tu fazias mas a tua voz nunca vai ser esquecida.